Identidade na velhice e aposentadoria

Beatriz Leite Machado

Psicóloga CRP 06/134462

O trabalho da Psicologia com os idosos no centro-dia, principalmente em quadros de prejuízo cognitivo e demenciais, parece trazer como tema e objetivo principal a memória e a estimulação cognitiva. Isto é bastante verdade, porém a estimulação se dá de forma mais eficaz quando há um assunto com que o grupo pode se identificar e apropriar-se. Além disso, o trabalho com memória traz conteúdos pessoais e sociais que não podem ser ignorados, e que se fazem importantes na (re)construção de identidade do idoso.

Atividade com a psicóloga

Um assunto que foi trabalhado com o grupo de idosos no Centro-dia em maio de 2019, que remeteu a memórias e a experiências atuais, foi “Aposentadoria”. Os resultados desta atividade trouxeram reflexões para o grupo e para a equipe.

A proposta era discutir o que é aposentadoria, qual a importância e qual o desejo de continuar trabalhando. O grupo era de 8 idosos, porém uma delas, devido seu quadro cognitivo participou de forma alternativa com necessidade de manejo de sintomas comportamentais e atenção. Somente uma idosa não possuía nenhum prejuízo cognitivo.

Os idosos receberam folhas com perguntas. Conforme respondiam, trocavam de folhas entre si, de forma que todos responderam às mesmas perguntas e leram as respostas uns dos outros. Alguns participantes, com maior prejuízo cognitivo repetiram respostas. Organizei o conteúdo, condensando algumas respostas que se repetiram ou que tinham o mesmo significado e foram esclarecidas em conversa com grupo.

O QUE É SER APOSENTADO?

            É cumprir tempo de serviço.

            Um direito do idoso, ter benefícios por já ter trabalhado muito.

            É útil. É importante dar valor ao tempo que foi trabalhado e ao que tem agora, dar valor à vida.

            É quando já não se trabalha mais.

O QUE VOCÊ ESPERAVA DA APOSENTADORIA?

            Poder descansar, e realmente posso. Comprar presentes para pessoas queridas, passear… Poder viver.

            Receber de volta o que contribuí. Nada diferente.

GOSTARIA DE CONTINUAR TRABALHANDO?

            Sim, enquanto posso.

            Já trabalhei muito em casa…

            Não.

            Faço algumas costuras.

QUAL A IMPORTÂNCIA DE RECEBER APOSENTADORIA?

            Para poder viver, a gente precisa desse dinheiro. Ter segurança.

            É meu direito receber de volta o que eu contribui.

O QUE SE DEVE FAZER QUANDO SE APOSENTA?

            É preciso ter os documentos em ordem para receber o que é seu direito.

            Quero passear e descansar. Viajar…

            Não se deve fazer mais nada.

        É POSSÍVEL CONTINUAR ATIVO?  DE QUE FORMA?

            Com saúde, é possível.

            É preciso. Trabalhando em casa, buscando estar melhor sempre.

            É importante fazer outras coisas para não ficar sozinho, sair de casa, ter amigos, ver coisas diferentes.

É IMPORTANTE PENSAR NA APOSENTADORIA?

            Sim, é o que vai nos ajudar a viver quando não trabalharmos mais.

            Traz segurança. Para viver melhor.

 Gostaria de compartilhar algumas reflexões que as respostas geraram. Primeiro, a percepção de contribuição e de segurança associada a aposentadoria. O grupo faz parte de uma geração que viu os direitos trabalhistas se desenvolverem, e criou uma relação com o trabalho muito diferente das gerações atuais. Conheceram a instabilidade econômica, inclusive por muitos integrantes serem imigrantes ou filhos de imigrantes. Além disso, as mulheres, ainda que tenham sido donas de casa, viúvas recebem pelo marido. Não busco debater questões políticas atuais, porém não podemos ignorar como a aposentadoria está associada à imagem que esses idosos tem de si e suas velhices.

Em segundo lugar, pode-se observar que a noção de receber pelo tempo de contribuição não está associada ao descanso somente, ou ao alheamento. Foi relevante que as falas trazem a busca por viver, “É importante dar valor ao tempo que foi trabalhado e ao que tem agora, dar valor à vida.” (Sic), “Comprar presentes para pessoas queridas, passear… Poder viver.” (Sic), “Para poder viver, a gente precisa desse dinheiro.” (Sic), “Para viver melhor(sic). 

Com poucas exceções, que apresentaram pontos de vista menos otimistas, dentro do grupo, é visível como, mesmo que a aposentadoria signifique meio de sobrevivência pra uns, ainda está associada a potencias, de viajar, de compartilhar afetos com pessoas queridas. Entende-se que há lugar para ganhos e prazeres na velhice.

O dinheiro, de forma geral, é o maior poder que se pode ter perante a sociedade já há anos. Podemos refletir então na importância da aposentadoria, mesmo para aqueles que não tem total autonomia de suas finanças. O peso de ser reconhecido como alguém que contribuiu, e por isso receberá contribuições também. É um assunto que abre campo para discussões em diversos aspectos, porém busco me ater à autoestima e identidade na velhice. O valor de ser reconhecido. Se pensarmos em dinheiro como poder, a aposentadoria é uma legitimação de quem se aposenta (majoritariamente idosos), ou seja, é legítimo que o aposentado se mantenha ativo como cidadão tanto quanto qualquer outro sujeito não aposentado.

É interessante pensar como essa perspectiva parece bastante lógica, e se faz presente de forma sutil, pois no imaginário social, aposentadoria ainda é fortemente associada a invalidez e/ou impotência.

Trago essas breves reflexões como forma de estimular todos nós a continuarmos transformando nossa visão de velhice, envelhecimento, demência… E valorizando as potências e limitações com que nos deparamos.